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Momentos Pungentes em que o Réu não devem ser Citado e sua Repercussão no Novo Marco Legal do Seguro
Voltaire Marenzi
Advogado e professor
Vou procurar dissertar sobre fatos mediáticos sem, no entanto, envolver qualquer cunho de conotação política partidária.
Vou denominá-los de momentos pungentes em que passa quer a parte que deve ser intimada/citada, quer uma pessoa integrante de uma família enlutada.
O?Código de Processo Civil Brasileiro (Lei?13.105/2015) parte do princípio de que a citação é indispensável à validade do processo.[1]
Todavia existe neste diploma processual situações que são mitigadas temporariamente para que ocorra essa angularidade a fim de que seja estabelecido o devido processo legal.[2]
Como escreveu um processualista moderno “não há razão para se afastar desses casos a aplicação do princípio da instrumentalidade das formas, só devendo ser reconhecida a nulidade da citação se o demandado demonstrar efetivo prejuízo”.[3]
Não há prejuízo quando a parte terá um prazo exíguo para contatar seu advogado?
Claro que sim.
O próprio diploma legal acima mencionado e a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça identificam circunstâncias em que a tutela da dignidade da pessoa humana (art.?1º,?III, da CF/88) impõe o adiamento ou mesmo a substituição do método de citação. Os exemplos a seguir são os que a doutrina costuma chamar de “momentos pungentes”?—?situações de forte carga emocional ou vulnerabilidade que podem tornar a citação um ato abusivo ou inútil.
Velório ou sepultamento de parente próximo do réu. Princípio da dignidade (CF/88, art.?1º,?III) + art.?245, §1º, CPC (nulidade de citação que causa “grave dano”). O Oficial de Justiça deve aguardar momento oportuno; se já realizada, a citação pode ser anulada se demonstrado prejuízo.
Internação hospitalar em UTI ou estado terminal Art.?6º, caput, CDC (vulnerabilidade); art.?139,?II,?CPC (adequação dos atos). Prevalece a saúde do réu; juiz pode nomear curador provisório (art.?72,?II,?CPC) ou suspender prazo.
Sala de parto ou puerpério imediato. Convenção 183 da OIT + proteção à maternidade (CF/88, art.?7º,?XVIII). Citação aguarda alta médica ou é feita por hora certa em domicílio após período de resguardo.
Conflito armado, manobras militares ou missão de paz. Art.?244,?IV,?CPC (militar em serviço); Estatuto dos Militares (Lei?6.880/80). Juntada do mandado suspende prazo até 10?dias após o término da operação.
Domingo, feriado nacional ou religioso e nos “dias de guarda” de culto. Art.?212, caput, do CPC . Ato praticado nesses dias é válido somente se o juiz declarar urgência (art.?212, §2º).
Horário noturno (após 20?h), salvo autorização judicial expressa e fundamentada Art.?212, §3º, CPC. Nulidade relativa se não demonstrada urgência.
Réu em regime fechado ou cela disciplinar (ameaça de represália). Regras de Mandela, art.?239?§?único?CPC. Juiz pode determinar citação por intermédio da direção do presídio ou por videoconferência (§1º?B do art.?236).
Processos que envolvem adoção ou destituição do poder familiar (identidade preservada). ECA, arts.?166?§2º e 166-A. A citação ocorre sob sigilo, muitas vezes por hora certa ou carta precatória fechada.
Faço também aqui, uma breve reflexão sobre o novo Marco Legal do Seguro com suas repercussões neste cenário.
A Lei?14.998/2024 (“Marco Legal dos Seguros”) entrará em vigor em 10?de?dezembro?de?2025, após vinte anos de debates legislativos. Entre várias inovações, duas afetam diretamente a discussão sobre citação do réu:
Consolidação da responsabilidade civil do segurado e da seguradora (arts.?52 a?61 da nova lei).
A seguradora passa a integrar o polo passivo de forma facultativa quando a ação é proposta contra o segurado (art.?57). Isso significa que, em sinistros de Responsabilidade Civil, o autor pode citar apenas a seguradora, apenas o segurado ou ambos.
Quando só a seguradora é demandada, o segurado adquire a qualidade de litisdenunciado obrigatório. Em casos de grave enfermidade ou luto do segurado, a escolha do autor por citar somente a seguradora evita constrangimentos e custos com nulidades.
Já com relação a regras de cessão e portabilidade de carteiras se obedecerá o que está previsto no artigo 77 desta Nova Lei.
Deveras. Se a carteira foi transferida e a seguradora cedente foi exonerada de responsabilidade pela SUSEP, citá?la seria ato inútil (falta de legitimidade passiva). O Marco Legal exige que a nova dona da carteira seja identificada nos clausulados enviados aos segurados e nos registros da autarquia.?
Destarte, o autor que deseje evitar nulidades?poderá optar por demandar diretamente a seguradora (art.?57 da lei), quando tiver notícia de que o segurado se encontra em algum “momento pungente”.
De outro giro, o juiz pode, à luz dos arts.?139?II e 373?CPC, determinar ofício que a citação seja dirigida apenas à seguradora, preservando a pessoa vulnerável.
No outro polo, a seguradora terá direito de regresso contra o segurado (art.?60), mas isso pode ser exercido posteriormente, respeitando o período sensível.
Acredito que estas breves reflexões favorecem a efetividade do processo, protegendo a dignidade do réu e se harmoniza com a moderna regulação do seguro, que desloca parte da carga processual para empresas com maior capacidade técnica e financeira.
É o que penso.
Porto Alegre, 24 de abril de 2025.
Em razão do ineditismo e até um certo ponto com uma conotação folclórica, tomei ciência hoje pela reportagem estampada no Google, que uma proprietária de uma BMW teve seu veículo danificado, após ser atingido por um touro.
O acidente teria ocorrido em uma avenida que tem ligação com uma região de condomínio, no distrito de Bonfim Paulista, localizado em Ribeirão Preto/SP, na manhã de sexta-feira próxima passada, dia 11/04.
Ademais, o vídeo gravado convida a atenção pelo fato extravagante e bastante incomum, assim como pela gravidade da cena oportunizando a figura de um outro protagonista convidado a fazer parte daquele cenário curioso, vale dizer, uma Companhia de Seguros.
Segundo informações do corretor que intermediou esse seguro, o caso é inédito em razão de que os fatos normais acontecem quando o segurado atropela um animal na pista. Neste caso, diz o profissional, foi o animal que atropelou o automóvel conduzido por uma segurada.
Consoante relatos sobre este fato o touro teria atingido outro veículo, em menores proporções, além de ter avançado em um homem que estaria na avenida.
Outros depoimentos de moradores daquela região, dão conta de que a presença de animais na pista naquele local seria comum.
O automóvel irá para a realização de uma perícia, mas, provavelmente, sofrerá perda total uma vez que o veículo em tela teve abalo em toda sua estrutura. Nesta hipótese a seguradora terá de pagar a indenização prevista na apólice e em sede de sub-rogação poderá obter ressarcimento junto ao dono do animal.
A circulação de animais em vias públicas, especialmente em rodovias, é um problema recorrente no Brasil, gerando inúmeros acidentes e prejuízos, inclusive fatais. Diante disso, surge o questionamento: quem responde civilmente pelos danos causados por esses animais? A legislação brasileira, especialmente o Código Civil, disciplina a responsabilidade do proprietário ou detentor do animal. Este artigo analisa o enquadramento jurídico dessa responsabilidade, à luz dos dispositivos legais e da jurisprudência dominante.
O artigo 936 do Código Civil Brasileiro estabelece:
“O dono, ou detentor, do animal ressarcirá o dano por este causado, se não provar culpa da vítima ou força maior.”
Este dispositivo impõe uma responsabilidade objetiva ao proprietário ou detentor do animal, ou seja, independe da comprovação de culpa. Basta a existência do dano e o nexo de causalidade entre este e o animal para que haja obrigação de indenizar, salvo em caso de culpa exclusiva da vítima ou força maior.
Quando um animal adentra uma pista de rolamento e causa um acidente, o proprietário será responsabilizado civilmente, nos termos do artigo acima enunciado, desde que seja possível identificá-lo. Essa identificação pode ocorrer por meio de marcas, registros, testemunhos ou sistemas de monitoramento.
Porém, a dificuldade de identificação do dono é um dos principais entraves para a responsabilização. Nesses casos, a vítima poderá ficar desamparada, a não ser que seja possível atribuir responsabilidade ao ente público responsável pela via, com base no dever de fiscalização e manutenção da segurança do trânsito.
Há decisões que reconhecem a responsabilidade do Estado (União, Estado ou Município) por omissão na vigilância e manutenção da rodovia, com base no art. 37, §6º da Constituição Federal, quando não se consegue identificar o dono do animal:
“As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros [...].”
Neste caso, a responsabilidade estatal é subjetiva, baseada na omissão do dever de agir para evitar o dano.
A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça tem sido firme na aplicação do art. 936 do CC, verbis:
RECURSO REPETITIVO
Pesquisa de tema: Tema Repetitivo 1122
Situação do tema: Acórdão Publicado - RE Pendente
Pesquisa de Repetitivos e IACs Anotados
Relator
Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA (1147)
Órgão Julgador CE - CORTE ESPECIAL
Data do Julgamento 21/08/2024
Data da Publicação/Fonte. RT vol. 1070 p. 315.DJe 26/08/2024.
Tese Jurídica
"As concessionárias de rodovias respondem, independentemente da existência de culpa, pelos danos oriundos de acidentes causados pela presença de animais domésticos nas pistas de rolamento, aplicando-se as regras do Código de Defesa do Consumidor e da Lei das Concessões". Grifo meu.
Veja o Tema Repetitivo 1122.
Ementa:
RECURSO ESPECIAL REPETITIVO. RESPONSABILIDADE CIVIL DAS CONCESSIONÁRIAS DE RODOVIAS POR ACIDENTES CAUSADOS PELO INGRESSO DE ANIMAIS DOMÉSTICOS NA PISTA DE ROLAMENTO (TEMA 1.122).
RESPONSABILIDADE INDEPENDENTEMENTE DA EXISTÊNCIA DE CULPA. APLICAÇÃO. CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. INCIDÊNCIA. OBSERVÂNCIA DOS PADRÕES DE SEGURANÇA PREVISTOS NOS CONTRATOS DE CONCESSÃO. INSUFICIÊNCIA. TEORIA DA CULPA ADMINISTRATIVA. INAPLICABILIDADE. PRINCÍPIOS DA PREVENÇÃO, DA SOLIDARIEDADE E DA PRIMAZIA DO INTERESSE DA VÍTIMA. APLICAÇÃO. DEVER DE FISCALIZAÇÃO DOS ENTES PÚBLICOS.
AFASTAMENTO DA RESPONSABILIDADE DA CONCESSIONÁRIA. NÃO OCORRÊNCIA.
É verdade que o tema repetitivo acima ementado diz respeito a animais domésticos, mas que por analogia deve ser aplicado ao vertente caso por uma razão muito simples, ou seja, se a regra é aplicada para animais de pequeno porte o que se dirá para a fiscalização de animais de grande porte como é o caso do ineditismo de um touro que atropela o automóvel de uma pessoa.
A seguradora indenizará, mas a sua sub-rogação se dará nos termos do enunciado no inciso III, do artigo 346 do atual Código Civil.
Deveras. Quando o dono é identificado, a responsabilidade é direta; se não for, poderá incidir a responsabilidade do poder público pela omissão no dever de fiscalização.
A presença de animais soltos em vias públicas é um risco concreto à segurança viária, cabendo ao proprietário o dever de vigilância sobre seus animais. O Código Civil impõe uma responsabilidade objetiva, mas a efetividade dessa norma depende da possibilidade de identificação do infrator. Quando isso não ocorre, o Estado pode ser chamado a responder, nos termos da responsabilidade por omissão.
A prevenção e fiscalização são, portanto, medidas essenciais tanto por parte dos particulares quanto do poder público para evitar acidentes e garantir o direito à indenização das vítimas.
A par disto, como ressaltei supra, a seguradora certamente pagará a indenização e em ação regressiva vai se ressarcir quer do dono do animal nas circunstâncias acima ventiladas, quer do Estado pela falta de uma fiscalização mais presente do agente estatal.
É o que penso.
Porto Alegre, 13 de abril de 2025.
[1] Art. 239 do CPC.
[2] Art. 244 do CPC.
[3] Daniel Amorim Assumpção Neves. Código de processo Civil comentado artigo por artigo. 9ª Edição, página 448.
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